GLAUCO DINIZ DUARTE – Por dentro da maior montadora do mundo
Toyota é um tédio. Na montadora asiática não há “executivos celebridade” — seu presidente, o japonês Katsuaki Watanabe, é um sujeito discreto, pouco afeito a entrevistas, festas ou frases bombásticas. As maiores inovações da empresa levam anos até sair das pranchetas e ganhar as ruas — o híbrido Prius, por exemplo, seu modelo mais revolucionário, demorou quase 50 meses para ser idealizado e atingir o nível de desempenho exigido pelos engenheiros da Toyota. Na matriz, os funcionários têm emprego vitalício, uma instituição decrépita até mesmo na conservadora sociedade japonesa, e a alta cúpula trabalha com um conceito muito particular do que seja meritocracia — para galgar posições na hierarquia, é preciso ter não apenas talento mas também idade (mais de 50 anos, no caso dos vice-presidentes, e perto de 60 para assumir a presidência). Nenhum julgamento é feito da noite para o dia ou baseado no argumento de “aproveitar oportunidades de mercado” — na Toyota, a tomada de decisão é um processo consensual, jamais motivado por fatores como o chamado “efeito manada”. Tudo é lento, planejado, modorrento.
Mas tudo é também praticamente perfeito. A fórmula apoiada em discrição, busca pela qualidade, longo relacionamento com empregados e fornecedores e crescimento meticulosamente calculado levou a Toyota à inédita liderança do mercado mundial de automóveis no fim de abril, ultrapassando a americana General Motors, que havia 73 anos ocupava o posto. Trata-se de um daqueles momentos históricos em que um sistema mais forte e competitivo finalmente deixa para trás outro envelhecido. Passo após passo, a Toyota conseguiu se reinventar nas últimas décadas. A GM, um dos símbolos máximos do capitalismo americano, perdeu-se em sua teia de ineficiência e agora tenta desvencilhar-se dela. Esse fato é mais importante que os números em si. E os japoneses parecem saber disso. No primeiro trimestre deste ano, a Toyota produziu 2,35 milhões de veículos em todo o mundo — ante 2,26 milhões fabricados pela GM no mesmo período. O recorde, porém, não mereceu grandes comemorações na matriz. Ao contrário. Seus executivos tentaram a todo custo minimizar o feito. “Nossa maior luta é para ser a número 1 em termos de qualidade, não em quantidade”, afirmou a EXAME o presidente da empresa, Katsuaki Watanabe, poucos dias depois de a Toyota assumir a liderança do mercado mundial de automóveis.
Embora a vantagem na produção seja referente apenas aos três primeiros meses deste ano, há poucas dúvidas de que a Toyota continue avançando. A previsão é que até o fim de 2007 a empresa fabrique 9,3 milhões de carros — quase 200 000 unidades mais do que a GM deve produzir, segundo estimativa de analistas. Há anos a montadora japonesa vem mostrando que é mais eficiente que suas concorrentes americanas. Com praticamente o mesmo número de funcionários da GM, a Toyota ganha mais dinheiro e tem um valor de mercado muito superior. Suas ações valem hoje 219 bilhões de dólares em bolsa, cifra 12 vezes superior à da montadora americana (veja quadro ao lado). Para entender como a Toyota se tornou uma máquina de crescimento, capaz de gerar lucros contínuos, EXAME esteve na sede da montadora, em Toyota City, uma cidadezinha próxima a Nagoya, no interior do Japão. Em frente ao imponente edifício, inaugurado há pouco mais de um ano, uma enorme cerejeira florida, a árvore símbolo do Japão, chama a atenção dos visitantes. Dentro do prédio, recepcionistas miúdas e risonhas encarregam-se de dar as boas-vindas a quem chega. Ao lado do edifício principal fica o centro de inovação da montadora — área em que a circulação de visitantes é, obviamente, restrita.
Olhada por dentro, fica claro que nada é mais forte na Toyota do que sua cultura. Tudo mais — a produção enxuta, a logística superafiada, os carros que fazem sucesso com o consumidor — é apenas reflexo do jeito Toyota de pensar e agir. Qualquer um dos 296 000 funcionários da montadora sabe exatamente quais os princípios e os valores da empresa. Como seguidores de uma doutrina, eles parecem acreditar em cada palavra que dizem. Da lista de “preceitos” da montadora constam recomendações como “Seja gentil e generoso, lute para criar uma atmosfera calorosa e caseira”. Enquanto em boa parte das empresas o principal motor do crescimento é o reconhecimento do sucesso individual — que se manifesta no pagamento de bônus atrelados ao cumprimento de metas, em programas de opções de ações e na ascensão meteórica na carreira –, na Toyota o que move os funcionários é a certeza de que é possível fazer mais e melhor a cada dia, o chamado kaizen. Todos os empregados devem ser eternos insatisfeitos, buscando obsessivamente a qualidade — uma lógica que se aplica do operário ao presidente e que privilegia o trabalho em grupo. Para que todos saibam exatamente qual é seu papel na engrenagem, os recém-contratados passam por um treinamento de cinco meses antes de assumir seu posto: 30 dias dedicados à cultura Toyota, dois meses numa fábrica, para ver de perto como os carros são produzidos, e o restante dentro de uma concessionária, porque é preciso saber o que quer o consumidor. A sensação de que todos estão remando juntos por um objetivo comum é reforçada pela política salarial. “Na matriz, o salário do presidente não é nem dez vezes superior ao de um funcionário do chão de fábrica”, afirma Gilberto Kosaka, ex-executivo da Toyota no Brasil e hoje diretor do Lean Institute, consultoria especializada no “sistema Toyota de produção”. “Não sei se isso é positivo ou não, mas nosso múltiplo é realmente bem mais baixo que o de muitas empresas”, afirma Mitsuo Kinoshita, vice-presidente executivo da Toyota e responsável pela área de recursos humanos. Só para efeito de comparação, é comum em empresas americanas que o presidente ganhe mais de cem vezes o salário de um operário.
O conservadorismo manifesta-se também na seleção dos principais executivos, quase todos recrutados logo depois do término da faculdade e treinados pela própria companhia. Com 52 fábricas espalhadas por 26 países, a Toyota hoje produz quase metade de seus veículos fora do Japão. Mesmo as sim, na alta administração, que conta com cerca de 30 executivos, há apenas um estrangeiro, o americano Jim Press, responsável pela operação nos Estados Unidos (a maior fora da matriz), promovido a diretor global da empresa no início de abril. Mulheres são minoria. Somente 10% da força de trabalho da montadora no Japão é feminina (o índice se repete em várias subsidiárias, inclusive na brasileira). Há apenas uma mulher em um cargo de liderança — Mayasyo Hasegawa, nomeada chefe do departamento de responsabilidade social em janeiro deste ano.
A revolução silenciosa protagonizada pela Toyota levou 50 anos para atingir seu ápice. Fundada há 70 anos, a montadora viveu sua pior crise após o final da Segunda Guerra. Às portas da falência, o então presidente da empresa, Eiji Toyoda (primo do fundador, Kichiro Toyoda), pediu a seu principal executivo, o engenheiro Taiichi Ohno, que reinventasse o processo produtivo da montadora. Os tempos de aperto não permitiam mais o desperdício e os estoques altos, comuns às indústrias da época. Para encontrar a resposta ao problema, Ohno não recorreu a consultorias — ele foi para dentro da fábrica e passou um pente-fino em cada etapa do processo de fabricação de automóveis. Nascia ali o que veio a ser chamado de sistema Toyota de produção, cujos principais pilares são o estoque zero, a melhoria contínua e a qualidade na fabricação. Durante cinco décadas, a Toyota dedicou-se a aperfeiçoar seu método de trabalho, tornando a produção cada vez mais enxuta e eficiente. Aos poucos, virou referência não apenas para outras montadoras — as fábricas da GM, da Ford ou da Volkswagen, por exemplo, são praticamente idênticas às da japonesa — mas também para empresas de outros setores, casos de Alcoa e Bosch, duas de suas seguidoras. O segredo do sucesso do modelo é resultado da mais pura cultura Toyota. “A lenta — mas mais coerente — tartaruga causa menos perda e é muito mais desejável do que a lebre veloz que corre na frente e pára de vez em quando para cochilar. O sistema Toyota de produção só pode funcionar quando todos os funcionários se tornam tartarugas”, afirma Ohno no livro O Modelo Toyota, escrito por Jeffrey Liker, professor de engenharia na Universidade de Michigan. É justamente essa paciência e atenção aos detalhes que as rivais, por mais que tentem, não conseguem replicar. “Embora muitas montadoras saibam como o sistema funciona, a Toyota tem mais disciplina e visão de longo prazo para esperar os resultados”, afirma Marcos de Oliveira, presidente da operação brasileira da Ford.
Nas linhas de produção, as “tartarugas ninjas” da montadora japonesa não se atrasam e não faltam ao trabalho. Como os trabalhadores são altamente especializados e não podem ser substituídos do dia para a noite, a Toyota chega a premiar as fábricas cujo índice de absenteísmo é zero (nos Estados Unidos, por exemplo, os empregados de unidades que registram 100% de assiduidade concorrem anualmente a sorteios de carros). Esse exército de operários trabalha sempre obedecendo a um mesmo ritmo. Nos treinamentos é utilizado até um metrônomo, instrumento que estabelece um padrão fixo para os andamentos musicais para que todos se acostumem a manter a mesma velocidade. Essa precisão é fundamental, uma vez que as linhas de produção operam com estoques baixíssimos — em geral, não mais que o necessário para meia hora de trabalho. Se algum dos operários encontra o mínimo defeito em uma peça ou no carro que está sendo montado, imediatamente puxa uma cordinha esticada ao lado da linha de produção para interromper o processo. Segundo a filosofia Toyota, é melhor parar a produção e consertar no ato um problema do que deixar a bomba estourar no final. Apesar dos cuidados, a empresa não está imune a reveses. No ano passado, uma sucessão de recalls da montadora fez com que o presidente Watanabe pedisse desculpas publicamente pelo tropeço. “Problemas de qualidade e recalls sempre vão existir para qualquer montadora”, afirma Letícia Costa, presidente da consultoria Booz Allen no Brasil.
A ascensão da Toyota ao topo da indústria deveu-se, em parte, à crise aguda pela qual passam as montadoras americanas. Atoladas em dívidas, GM e Ford chegaram perto da insolvência e hoje tentam desesperadamente reverter a situação. A GM iniciou um programa de redução de custos que inclui o fechamento de 12 fábricas e a demissão de 30 000 empregados até 2008. A Ford, que no ano passado registrou o prejuízo recorde de 12,7 bilhões de dólares, também planeja fechar 14 fábricas e demitir 30 000 funcionários nos próximos anos. Há décadas, as duas montadoras oferecem aos funcionários benefícios que estrangulam suas finanças, como aposentadorias com valor preestabelecido (na maioria das empresas, o valor do benefício a ser pago no futuro depende do rendimento das aplicações) e planos de saúde gratuitos até mesmo para os aposentados. A Toyota escapou dessas armadilhas. “Uma das razões é que os funcionários das fábricas da Toyota nos Estados Unidos não são sindicalizados”, afirma John Casesa, sócio da consultoria americana Case sa Shapiro Group, especializada no setor automotivo. Blindada contra problemas trabalhistas, a Toyota avançou quase ininterruptamente no mercado americano desde que se instalou por lá, em 1984, e hoje tem 17% das vendas de automóveis no país.
Para manter a média anual de crescimento de dois dígitos das últimas quatro décadas, a Toyota precisará superar alguns desafios. A empresa tem hoje quase 36 bilhões de dólares em caixa para financiar sua expansão, e seus planos são de abrir duas novas fábricas por ano — a maioria delas fora do Japão. Replicar a cultura da empresa em todas as unidades será vital para garantir a padronização das operações. “Quanto mais a companhia cresce, mais difícil se torna encontrar pessoal suficiente para manter o mesmo nível de inovação e de qualidade do passado”, afirma o consultor Casesa.
Com a liderança do mercado, a Toyota agora passa também a ser mais visada. “Certamente os executivos da montadora estão mais preocupados do que felizes com o título de maior do mundo”, afirma José Roberto Ferro, diretor do Lean Institute do Brasil. O principal temor é que os consumidores tenham uma reação anti-Toyota, sobretudo nos Estados Unidos, onde os problemas das montadoras locais ganham ampla repercussão na mídia e, em alguns estados, servem de combustível a campanhas nacionalistas. Para não ser vista como “a forasteira que devastou Detroit”, a montadora japonesa tem feito uma ampla campanha de relações públicas. Segundo reportagem publicada recentemente pela revista americana Business Week, desde 2002 a companhia investiu mais de 5 milhões de dólares por ano em campanhas para reforçar sua imagem perante consumidores, políticos e formadores de opinião. Paralelamente, tem contratado fornecedores americanos e instalado fábricas em estados mais conservadores, como o Texas, de onde saem suas picapes Tundra. “Estamos tentando nos tornar cada vez mais locais”, afirma Masanao Tomozoe, executivo responsável pelas operações da Toyota nas Américas.
O outro desafio é continuar desenvolvendo carros que caiam no gosto dos consumidores. Para alcançar a meta, a Toyota alicerça seu processo de inovação num longo planejamento e num investimento mais que generoso — no ano passado foram mais de 8 bilhões de dólares aplicados em pesquisa e desenvolvimento. “Já temos uma boa idéia de como serão as cidades e as estradas nos próximos 30 anos e que tipo de carro pode ser a melhor solução para elas”, afirma Shinzo Kobuki, chefe do departamento de pesquisa e desenvolvimento da companhia e um dos engenheiros responsáveis pela criação do Prius. O modelo híbrido, aliás, é um exemplo contundente do estilo Toyota de inovar. No início da década de 90, o então presidente da empresa, Eiji Toyoda, pediu que seus engenheiros pensassem em qual seria o tipo de veículo ideal para o século 21. O Prius nasceu não de uma idéia brilhante formulada por um engenheiro fenomenal, mas como resultado de um árduo trabalho em grupo que levou quatro anos para ser finalizado. Atualmente, a equipe de pesquisa dedica-se a desenvolver modelos que utilizem energias alternativas como combustível (quatro tecnologias estão em estudo) e a criar carros de baixo custo que possam competir em mercados emergentes. Uma das possibilidades é que o Brasil — onde a Toyota detém tímidos 3% de participação de mercado — venha a sediar uma nova fábrica para produzir veículos baratos.
Muitos desses desafios deverão ser enfrentados não apenas por Watanabe mas também por Akio Toyoda, seu provável sucessor. Aos 51 anos de idade e membro da família fundadora da empresa, Akio ocupa atualmente uma das vice-presidências da companhia e tem entre suas atribuições a área de tecnologia. Com experiência fora do Japão, é um dos raros executivos da montadora a falar inglês fluentemente. “Ele tem um estilo mais de executivo global que de executivo japonês”, diz um funcionário da Toyota que o conhece pessoalmente. Esse “estilo global” deverá ser crucial para garantir o sucesso da empresa no futuro. Mas a passagem de bastão ainda deve demorar alguns anos para ocorrer — no melhor estilo Toyota, a decisão está lenta e silenciosamente amadurecendo na mente dos homens que comandam a empresa.